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A velha cobra e o velho árvore

Microconto da série Exercícios de Encantamentos nos Matos e Águas.

                Para subir pelas árvores e meter-se nos ocos e nos ocos doces dos frutos, a velha virava em cobra.

                Tanto que os pés lhe murchavam.

                Porém, a pele continuamente esticava e umedecia, estendendo-lhe mocidades.

                De certo modo, igual ao velho, que virava em árvore pela simples conta de que, arvorado, a sua muita idade não somava tanto, era como a das árvores-meninos. 

                Eram boa companhia incompatível um ao outro.

                A velha habituava abrir-se no chão e empoeirar-se em sabores. O velho empoleirava.

                Acaso a sombra do velho, arvorado, caía para outro lado, a velha cachimbava e debochava.

                Ao outro modo, carinhosa, a velha punha dedos leves e peregrinos pelas formas do velho, dedos multiplicados que lhe sacudiam folhagens verdes escuradas, dedos peregrinos de passos tão leves que desapareciam pouco a pouco até serem em outra coisa, transformados em miúdo doce corpo de escamas.

                A velha enrodilhava no tronco lenhoso do velho e subia-lhe como uma língua.

                Desejava um oco no alto.

                Ora o velho orvalhava, ora o velho retorcia e dobrava como árvores de sertão exposto.

                A velha era familiar com chãos secos e insistia de subir-lhe.  

                Talvez ela só quisesse mesmo um oco no alto para aninhar, mas o velho, desconfiado, apenas quando estendida na terra tateava lhe, com raízes de pouco vigor.

                A velha conhecia gemidos, rezas, até canções de almanaque e, temendo-lhe feitiços, o velho reservava-lhe egoísmos.

                Assim lutaram morenos tempos, ora áridos, ora enlameados.

                Até que a árvore fez nascer, em algum alto que a cobra insistisse, um fruto oco, um coco, e selou a cobra dentro dele.

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