meio nu
meio não
Quixote
Microconto, da série Saco de Papel.
Nos tabuleiros da feira da cidade pequena a que eu remeto, tem tempos de muitas medidas. As pessoas – a gente da cidade, que encurta tempos, e a gente de onde há casas onde o tempo pode se espalhar em quintais e paisagens - apalpam os tempos, avaliam os tempos pelas cores, pelos cheiros, pelos nascimentos e pelas mortes. Tudo vem para a feira. Os tempos trocam de mãos. Caso que podem também trocar de medida. Foi precisamente o tempo no velho e o peso dos sacos que ele colocaria no cavalo que me chamou a atenção. O cavalo era branco e guardava paciência amarrado no poste. Assim serve para eu dizer, certo ou errado, atando-me nesses atributos de branco e paciência e poste, que o cavalo era velho como o velho. O homem, esse parecia árvore velha plantado no meio de dois sacos grandes, brancos, bocas amarradas, teimosos no chão igual bicho morto. Cavalo, poste, peso no chão, árvore velha tomavam tempo. Eu passava - meu tempo e passo eram moços - e pelos lados eu perguntei se ele queria ajuda para colocar o saco no cavalo. Disse sim, imediato, firme e velho. Tomei o primeiro saco e levantei. O peso correspondeu ao imaginado, mas ainda assim pediu um pouquinho mais do meu tempo, um tanto que eu alimentasse um espanto em mim. Levantei o segundo saco e coloquei no cavalo. Senti a vida alegre no meu corpo de homem. O velho me agradeceu e sem que eu o tocasse, senti aperto de mão de homens. E segui, o meu caminho engoliu esse instante sem interrupção.
Só atrás de mim é que a pausa foi se fazendo, estendendo um espanto. Um rastro meu puxava meus olhos e as águas neles para trás, para o velho, o seu cavalo, o poste, o peso. Eu vi Quixote e seu cavalo branco, sua espada e seu peso, sua idade do tamanho de um moinho-de-vento, de um poste de rua. Eu quis dar colo ao velho Quixote. E eu fiquei parado olhando para isso, para minha piedade imprópria. Querer descansá-lo do peso heroico da feira ordinária semanal. Tirar-lhe o hábito de sair para buscar e voltar para a casa com um cavalo carregado de tesouros, ainda que seja só mais um dia de vida, um peso crescente e gente na rua. Até o fim. Fiquei parado olhando para isto, plantado, igual encontrei o velho olhando para o poste, sacos de feira nos pés. Senti de novo o aperto de mão de homens. Dragões se agitavam dentro de mim. Vida teimosa.